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A psicanalista Manuela Xavier reflete sobre o desfile de Isa Isaac Silva no São Paulo Fashion Week

Ocupar: verbo transitivo direto que significa tomar posse de, preencher, encontrar-se em. E não estamos ocupando sempre? O nosso corpo, o nosso tempo, as nossas trocas? Não. Estamos adoecendo o corpo, gastando o tempo e mercantilizando as trocas; e com isso só encontramos o vazio, que é sentido como angústia e ansiedade. Isa Isaac Silva, em seu desfile “Banho de Axé” nos convida a pensar o corpo como território e os afetos como coordenadas geográficas.

Não por acaso Isa escolhe a Ocupação 9 de Julho como palco para seu desfile, um espaço que é moradia de 500 pessoas e é também centro cultural e gastronômico, além de contar com uma horta comunitária. De um espaço vazio, inabitado, abandonado, para um espaço que abriga mais de 120 famílias que dão vida e ocupação a um terreno que antes era apenas concreto e tijolo.

Estrutura, para Isa, é axé; essa energia vital e sagrada que movimenta, nutre e organiza. Entretanto, sem um teto para repousar, não há energia que sustente; e nesse desfile, o mantra “Acredite no seu axé” ganha outros contornos e ecoa “Viabilize os territórios para que seja possível exercer o axé”. Foi isso que vimos em seu desfile que começa trazendo a pauta da moradia, um pilar fundamental na luta dos direitos humanos; mas que também traz reflexões sobre o corpo.

Sair das margens e ir para o centro, é isso que orienta toda a produção de Isa; que traz seu desfile para o centro de São Paulo, que ultimamente passa por um processo de revitalização e gentrificação; e para a Ocupação 9 de Julho, como forma de convidar as pessoas a conhecerem a potência de uma luta e a fertilidade de uma construção coletiva. Pensar o corpo como um território a ser ocupado é uma mensagem que fica depois de assistir ao desfile de Isa, que abre seu show com Luedji Luna, não apenas por ser a voz do hit “Banho de Folhas” que dialoga com a coleção “Banho de Axé”; mas por ser uma mulher negra da Bahia a ser indicada a um Grammy – das margens ao centro, ocupando e fertilizando. A própria Isa, uma mulher negra trans do interior da Bahia, fazendo moda e história na maior metrópole do Brasil, na maior semana de moda da América Latina – das margens ao centro, ocupando e fertilizando. Nas passarelas, outras personalidades como Jojô Todynho, uma mulher preta, gorda e periférica, apresentadora e atualmente estudante de direito; e Fred Nicácio, negro, gay,do interior do Rio de Janeiro, hoje médico e comunicador – das margens ao centro, ocupando e fertilizando.

Nós mulheres, somos ensinadas desde sempre a experimentar o corpo como um território-vitrine a serviço do outro; e não como espaço sagrado a ser ocupado, cuidado, fertilizado, potencializado. Isa apresenta uma narrativa a partir dos tecidos escolhidos e conta a história de intimidade com o próprio corpo: da rigidez de um jeans-armadura que protege, passando pelas texturas e relevos de um tweed mais maleável que convida ao toque – você já experimentou o seu corpo? Já se despiu das armaduras sociais, tirou as máscaras e as vestes e se tocou? Toque é afeto e reconhecimento, é cuidado e amor próprio; e esses são os dispositivos mais básicos para tomar posse de um corpo: conhecê-lo, respeitá-lo, cuidá-lo. Depois, vemos a passagem das malhas caneladas que contornam e abraçam o corpo; até a fluidez de uma viscose estampando vida e cor; uma metáfora, ao meu ver, ao encontro mágico com a invenção singular de ser quem se é.

Da armadura às asas, esse é ciclo de autoconhecimento e autocuidado; e o Banho de Axé é esse processo de purificação de tudo que não é nosso e fortalecimento da nossa energia única e singular. Banho de axé é também processo de cura e análise, tempo de olhar para nós mesmas buscando quem poderíamos ter sido se não fôssemos a rigidez dos papéis destinados para nós. Habitar o próprio corpo e fazer dele um lar é tarefa solitária e solidária, uma vez que o nosso corpo se constitui na alteridade, a partir do olhar do outro e dos seus afetos que nos afetam – e também nos ferem. Pensar o próprio corpo como uma ocupação requer convocar também os esforços coletivos para que seja possível olhar com mais gentileza para nós mesmos e para os outros. Pensar o corpo como uma ocupação, em tempos de rinoplastia, lipo hd e barriga chapada, é olhar a imagem no espelho não como uma massa pronta a modelar; mas como terra fértil pronta a receber as sementes de liberdade de tudo que podemos ser.

Lavar os resíduos do outro em nós, celebrar a beleza da nossa singularidade, perfumar o corpo e os ares da natureza que habita em nós, vestir o corpo de quem somos e fazer das roupas segunda pele. Ocupar, no lugar do abandono; pertencer, no lugar do estranhamento; das margens ao centro.

Nesse São Paulo Fashion Week te convido a uma experiência especial: olhar com outras lentes o mundo da moda e encontrar ali respostas para as perguntas que você nem sabia que tinha – ou mesmo poder construir, de forma autoral, outras perguntas para as respostas que já não servem mais.

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